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Uma manhã qualquer.





A vida estava meio amarga naquela manhã. Enquanto bebia o café a goles curtos, o dia que mal começava já se mostrava infinito. Aquele tipo de infinito que não é vastidão, é só o não ter fim algo que, por natureza, deveria acabar.

Foi então que ela teve a ideia que pareceu absurda no primeiro momento, tentadora no segundo e irresistível no terceiro. Olhou para a porta da cozinha, certificando-se de que ninguém entrava, apurou os ouvidos, todos estavam longe, ainda meio adormecidos  preparando-se para começar o dia. Fosse rápida e, quando chegassem, já estaria feito.

Bebeu o último gole da xícara de café. Respirou fundo e não se deu tempo de hesitar. Abriu a tampa e mergulhou no pote de açúcar.

Que estranha sensação. Não sentiu que a vida ficara mais doce, de início. Ao contrário, pareceu sufocar, o pote era apertado, o fino pó entrava pelas narinas, ela tossia. Mas então, aos poucos, foi se ambientando, os espaços pareceram se abrir e os pulmões já sabiam como lidar com a nova atmosfera. Repentino, sentiu que dava já para caminhar. A sensação não era muito diferente de andar na areia fofa da praia e, assim como à beira do mar, podia ver um horizonte largo à sua frente, apenas não mais azul, e sim branco, todo branco de doer os olhos. 

Ouvi ao longe uma voz familiar, parou, era a mãe que chamava por ela na cozinha (aonde teria ido parar essa menina? Saíra sem ao menos dizer tchau, deixara bolsa, telefone, tudo para trás), quis gritar que não havia motivo para a preocupação materna, estava bem ali dentro do pote de açúcar. Mas achou melhor não, vai que a mãe resolvesse mergulhar  também? A viagem ao mundo mais doce era coisa que queria fazer sozinha, além do mais, nem sequer sabia se ali era um lugar seguro. Seguiu andando em frente, a voz dos familiares cada vez mais longe. 

Pareceu andar por horas e não via nada nem ninguém além de branco acima e abaixo de seus pés. Nada que lembrasse vagamente a jornada de Alice através do espelho. Nenhum Rei ou Rainha do Mundo Mais Doce viera ao encontro da forasteira inquirir sobre o que ela fazia ali, intrusa em seus domínios. Também não tinha ninguém para oferecer um chá, o que seria muito providencial, já que, com essa história toda de fazer um tour pelo pote de açúcar o café tinha ficado pela metade e, após tanta caminhada, estava era morta de fome. Uma encruzilhada que a fizesse estacar, aturdida, sem saber que caminho seguir (entrar na densa floresta ou seguir pelo caminho de tijolinhos amarelos montanha acima?), não, também isso não havia ali.  Não ouviu música, não viu cenas de rara beleza, não se deparou com seres fantásticos, meio homens, meio bichos.  Ali sentadinha diante daquela imensidão branca e silenciosa, estava a um passo da decepção. O mundo imerso em açúcar não tinha nada demais, afinal. Por que, então, se sentia tão bem? Súbito, assustou-se. Tentou ter um pensamento além dali e não conseguiu. Quis pensar no trabalho, seus problemas, demandas futuras, nas coisas que tinham que dar certo, nada. Tentou pensar na família, preocupar-se com as preocupações recorrentes. Não pôde. Só pôde amá-los como eram. Quis querer o que sempre queria. Esperar dos outros  o que esperava constantemente. Nada. Nada. Só conseguiu pensar que eram belos porque eram assim. Não quis querer, tampouco quis deixar de desejar.  Era como se, de repente, ela apenas existisse sem motivo, objetivo ou explicação. Sem quê, nem porquê também o mundo que, há pouco, deixara lá fora do pote. Soube então que sua jornada não fora frustrada, o mundo mais doce era isso afinal.

Levantou-se, respirou fundo uma vez mais e não se incomodou com os grãos nas narinas antes de pegar o caminho de volta.  Saindo do pote encontrou um rebuliço em casa. A mãe, preocupada com um possível sequestro, havia chamado o restante da família. Todos ficaram pasmos ao vê-la sair do pote de açúcar. Ninguém conseguiu balbuciar palavra enquanto ela tranquilamente dizia que explicaria tudo na volta, precisava agora ir ligeiro para o trabalho, estava atrasada afinal.
Pegou a bolsa e saiu pelo corredor. Fechando a porta atrás de si, nem ouviu quando a mãe disse baixinho “filha, tem açúcar no seu vestido”. Tivesse ouvido e nada se teria alterado.  Não queria mais apartar de si o doce da vida.

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