Um homem, visivelmente angustiado e aflito, cruza a rua de um lado a outro como se procurasse alguém ou alguma coisa, seu semblante está tenso, um sentido de urgência e até desespero paira no ar, enquanto o que ouvimos é uma animada trilha do desenho Tom e Jerry. Tudo soa desconexo e esta sensação de estranhamento irá perdurar pelos próximos 90 minutos de A Via Láctea.
O filme de Lina Chamie parte de um argumento simples: um casal tem uma discussão por telefone, arrependido das coisas que disse, o professor universitário Heitor (Marco Ricca) decide ir até a casa da namorada, a veterinária Júlia (Alice Braga) em busca de reconciliação. Tem início aí uma verdadeira odisséia pelas ruas de São Paulo no rush do entardecer, na qual irão se misturar - numa sucessão de acontecimentos aparentemente sem lógica – as reminiscências deste romance e a realidade fria e por vezes brutal da magalópole.
A direção opta por uma narrativa absolutamente não linear, carregada de subjetividade e repleta de citações literárias, num filme tanto cerebral quanto sensorial. Se por um lado resulta, em alguns momentos, num ritmo um pouco arrastado, por outro ganha na abordagem sensível e original do tema relacionamento amoroso já tão explorado pela sétima arte que fica difícil crer que ainda haja uma maneira de fazê-lo com alguma originalidade.
São Paulo ganha no filme dimensões de personagem. Paira sobre todos como uma entidade detentora de vontade própria que brinca com o destino de seus habitantes e, com isto, manifesta uma espécie de prazer mórbido.
O espectador que aprecia Carlos Drummond de Andrade ou Shakespeare, sem dúvida, vai usufruir com maior prazer os poemas que pontuam as lembranças dos amantes e o paralelismo entre a saga de Otelo e Desdêmona e o ciúme que motiva o conflito entre Heitor e sua Júlia.
Filmado quase em sua totalidade em suporte digital o filme acerta no roteiro inventivo – destaque para a sequência final que dá sentido a todas as interrogações deixadas no decorrer da história – e na escolha do elenco. Não é indicado, porém, àqueles que vão ao cinema em busca de ação ou happy end garantido.
Um filme delicado, de estética simples e arquitetura narrativa elaborada, não atingiu grande êxito comercial, mas agradará, no DVD, aos românticos que querem fugir do lugar-comum das películas açucaradas.
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