Wanda, a
diarista exuberante e simpática, passou pela patroa a caminho da porta. Sorriu,
como sempre fazia quando cruzava com ela pela casa, diligente, baldes e
vassouras nas mãos. Para esse sorriso
largo, raramente havia retribuição da mesma ordem (se é que alguma vez
houvera), o que, de modo algum, parecia dissuadi-la da ideia de continuar
sorrindo.
“Por que sorri
tanto essa moça? Será que acha a vida tão boa assim ou é birra, só pra me
irritar com tamanho alto astral?”, pensou a mulher estirada no sofá, nas mãos,
uma revista que lia sem muito interesse. Sem muito interesse também observou
Wanda, expediente encerrado, caminhar para a porta, maquiada, perfumada, dali
seguia direto para a escola na qual se esforçava para concluir, tardiamente, o
ensino médio. “Quero fazer faculdade, dona Maria Fernanda, não vou ser
empregada a vida toda, né?”, dissera certa vez, e sorrira. Ao retirar da
mochilinha o Bilhete Único, deixou cair um nécessaire. Bonito, colorido,
estampa de folhagens cor de flamingo. Clic. Wanda recolhera o objeto e saíra
fechando a porta com suavidade, não sem antes deixar um musicado “até quaarta
Dona Mariiia Fernanda, bom descanso” no ar.
O descanso,
que já era intranquilo desde que sua única filha, Marcela, deixara aquela casa,
foi ainda mais agitado. Maria Fernanda pensava no nécessaire que vira saltar da
mochila da empregada. Muito, mas muito parecido com um que a filha trouxera de
Nova Iorque. Não, não era possível que fosse igual, um acessório Kate Spade
estava fora das possibilidades financeiras de uma diarista. Devia ser apenas
uma falsificação, claro... A outra hipótese a deixava inquieta, melhor nem
cogitar. Mas cogitou.
Quando Wanda
chegou ao trabalho, na quarta-feira, se surpreendeu ao ver a patroa já
acordada, à mesa da cozinha, tomando café. Isso jamais acontecia. Desde que Maria
Fernanda fechara o escritório, há cerca de 3 anos, atendia pouquíssimos
clientes e conseguia resolver quase tudo de casa. Sem ânimo para outras
atividades, deixava-se ficar na cama. “Bom dia Wanda, tudo bem?”. A moça levou
outro susto, a iniciativa do bom dia partia sempre dela, afinal, e a resposta
quase nunca passava de um grunhido. Não hoje. Hoje, a patroa dissera bom dia
primeiro e olhara a empregada como nunca antes, da cabeça aos pés, como se
procurasse alguma coisa. E encontrou.
Um par de
brincos cor de turmalina, um lenço de padrão geométrico, um cardigã navy de botõezinhos dourados, uma camiseta
com a silhueta de Audrey Hepburn estilizada... Durante dias, Maria Fernanda apenas
observou Wanda chegar e sair de sua casa usando roupas, bijuterias, bolsas e
sapatos que pertenciam à sua filha. A jovem o fazia com total sem-cerimônia,
como se tivesse a convicção de jamais ser descoberta. E por que deveria temer? Começara
a trabalhar naquela casa há 2 anos e meio, pouco tempo depois da partida de
Marcela e, desde então, era a única pessoa a entrar no quarto da garota. A mãe
jamais cruzava aquela porta. No começo, a moça teve dificuldade de entender,
vez ou outra, fazia perguntas. Depois de algum tempo, recebendo sempre a mesma
(e seca) instrução “Wanda, apenas limpe direitinho e mantenha a porta sempre e
fechada” se acostumou, parou de perguntar. A patroa jamais poderia reclamar que
não fizera exatamente o que lhe fora pedido, limpar tudo direitinho e manter a
porta fechada.
“Wanda, antes
de ir embora, dá um pulo lá na sala, preciso falar com você”. Uma semana havia se passado desde o episódio do
nécessaire, era hora de colocar um fim àquele abuso. Faltando 15 minutos para
as 5 da tarde, Wanda apareceu, já trocada, mochilinha às costas. “Oi Dona Maria
Fernanda, a senhora queria falar comigo?”. Falou de forma muito calma, o
habitual sorriso nos lábios, indignando ainda mais a interlocutora. Maria
Fernanda disparou as acusações sobre ela como uma metralhadora, enumerou um a
um os objetos da filha identificados em seu poder, disse que tinha certeza de
que havia muitos mais e ameaçou entregá-la a polícia naquele mesmo instante,
seria presa em flagrante com as coisas na bolsa. “Achou que eu nunca ia perceber,
menina?! Pensa que eu sou uma completa idiota?! ... Hein?!”. A moça permaneceu
em silêncio, não negou, não confirmou, não se moveu. “Dona Wanda, a senhora
entrou no quarto já?” perguntou finalmente, olhos arregalados. Não, ela não
havia entrado, ainda faltava coragem. “Por favor, não chama a polícia. Não foi
roubo de ladrão, eu não vendi nada, não. Era tudo tão chic... Ninguém nunca
mais ia usar... Eu, eu.. Eu quis ficar um pouquinho igual a ela, sabe? Ela era
tão bonita, e tão sortuda! Modelo... Conhecia Paris, Nova Iorque... Um quarto
tão lindo, só pra ela, sem irmãos, sem morar com avó, com tio...” Enquanto
falava, a moça levantou e, lentamente, se encaminhou para o quarto de Marcela.
Abriu a porta, entrou, mas, ao contrário do que fizera nos últimos anos, não a fechou
atrás de si.
“Wanda, volte
aqui, o que você está fazendo? Acha que devolver um par de brincos e um batom
agora vai resolver sua situação? Wandaaa, volta aqui, agora!” A moça, daquele
cômodo, não saia. Maria Fernanda se viu diante da necessidade de fazer o que
tão veementemente evitara nos últimos 36 meses, entrar novamente no quarto da
filha morta.
Com passos
hesitantes caminhou até a porta entreaberta, ofegava, o pequeno trajeto
equivalendo a uma longuíssima jornada. Quando, finalmente, cruzou o batente, o
choque maior. Perdeu a respiração, sentiu a vertigem, perdeu a força das
pernas, Wanda a amparou antes que fosse ao chão.
A jovem diarista
não apenas levara para si roupas da antiga dona daquele quarto, mas também
trouxera para lá uma dezena de seus próprios objetos pessoais. O pequeno e
sagrado universo particular de Marcela fundia-se, agora, ao universo particular
de Wanda. Maria Fernanda mal podia crer no que via: na parede, disputando
espaço com as fotos de Berlim, um pôster autografado por algum artista
sertanejo da moda. Na escrivaninha, ao lado dos livros de arte e fotografia da
filha, revistas de fofoca e livros didáticos. O mancebo de madeira maciça
ostentava, com a mesma imponência, um sobretudo cor de oliva, de perfeita
alfaiataria, e uma camiseta cor-de-rosa com a palavra GLAMOUROUS bordada em
lantejoula barata...
As duas
mulheres estavam sentadas lado a lado na cama de Marcela, Maria Fernanda bebia
o copo d`água que Wanda fora buscar na cozinha. Nenhuma palavra havia sido dita
desde os gritos da patroa na sala. Coube a Wanda quebrar o silêncio. “Me
desculpa dona Maria Fernanda, eu não fiz por mal... É que não era justo... Eu
sei que a senhora pode chamar a polícia. Eu sei, sim”. O sorriso da moça havia
partido de todo, mas chorar, não chorava. Perguntou, no tom mais baixo que já
usara, nem rastro de musicalidade na voz. “E se eu devolver tudinho, a senhora
retira a queixa?”.
Os dedos de
Maria Fernanda tamborilaram suavemente no copo vazio e sua voz soou sem
qualquer traço de ansiedade.
“Wanda, a
partir de hoje, você passa a morar aqui... Me diz uma coisa, você pensa em
fazer faculdade de quê?”
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